Renuncia

Sendic, Palocci e os destinos da revolução

Mesmo sem reconhecer a justiça das acusações que tramitaram contra si, no “Tribunal de Conduta Política” da Frente Ampla Uruguaia, o senador Raul Sendic renunciou ao cargo de Vice-Presidente da República, que ocupava até sábado, dia 9, como sucessor imediato do Presidente Tabaré Vázquez. As acusações contra Sendic referiam-se ao “uso indevido de cartões corporativos” e ao apontamento, em seu currículo, de “título acadêmico que não possuía”. Seriam condutas antiéticas que, no ambiente decomposição que vivemos aqui no Brasil, não teriam maior relevância. Conheço Sendic, admiro-o e mantenho esta admiração inclusive pelo seu ato de renúncia à Vice-Presidência da República.

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Sendic é um bravo e filho de um bravo. Se errou – como apontaram seus companheiros de Frente – está respondendo pelo seu erro com essa renúncia dramática, que, ao contrário do que parece à primeira vista, possibilitará a sua recuperação política mais adiante. O Uruguai e a América Latina precisam de homens como Sendic que, com seus apenas 55 anos, pode purgar suas penas, se elas existem, e voltar com dignidade ao processo político democrático daquele país irmão. O Uruguai é o país recente do General Seregni, Ferreira Aldunate, Enrique Erro, Mujica, Raul Sendic (pai), Zelmar Michelini, Tabaré Vázquez e tantos outros – blancos, colorados, comunistas, socialistas, democratas autênticos – que resistiram à sanguinária ditadura militar daquele país que é, hoje, a democracia mais consistente da América Latina.

A Frente Ampla é uma frente política e programática muito diferente das frentes que funcionam aqui no Brasil, destinadas a governar o país com precariedade, cuja articulação -para arregimentar aliados-  precisa apenas deter-se na força que as oligarquias políticas regionais aportam para formar maiorias. Qualquer governo, em qualquer período, governou assim aqui no país. Tanto na República Velha, no período “pós-Guerra”, como na “Nova República”. Com diferentes finalidades imediatas e diferentes prioridades para responder, ou ser indiferente às brutais desigualdades que sempre laceraram a sociedade brasileira. A Frente Ampla tem um programa prévio à chegada no Governo, que deve ser cumprido, tem uma mínima disciplina interna e instâncias de controle sobre a conduta de quaisquer de seus militantes. Lá o sistema político estimula esta possibilidade, aqui ele elimina-a.

Geddel Vieira Lima aparece hoje em vários vídeos, nas passeatas do golpe, denunciando a corrupção e dizendo “basta!”. Tendo em vista o seu comprometimento com  as ilegalidades, ora levantadas, tudo indica que Geddel pensava que as investigações e processos que estão em andamento (como pensam originariamente alguns petistas) foram instaurados apenas para “ferrar o PT”. Não entenderam, – Geddel e esta parte do petismo – que estes procedimentos são o resultado de uma complexa operação política, que buscou sobretudo a legitimação das “reformas” exigidas pelo liberal-rentismo, que tinha Lula e o PT – só no seu início – como alvos fundamentais.

A eliminação do PT e da esquerda do cenário democrático, as reformas liberais, uma reação das instituições do Estado e de parte da sociedade civil, que sinceramente queriam combater a corrupção histórica do Estado brasileiro, se unificaram para tornar Temer e sua “Confederação de Investigados e Denunciados”, os reféns do reformismo. O fato do Juiz Moro proclamar a “exceção”, para servir aos desígnios golpistas da direita política e do oligopólio da mídia, não altera as características deste processo.

Trata-se de um episódio semelhante aos “Processos de Moscou”, na era staliniana, nos quais a verdade e a mentira se convertiam – rapidamente – uma na outra, a depender das pós-verdades construídas, mas sem perder o objetivo final, de parte de quem controla o Estado. Lá, no Estado Moderno sem democracia, o objetivo era manter no poder as castas da burocracia onipotente; aqui, no Estado Democrático débil com democracia decadente, “fazer as reformas” e eliminar a esquerda pensante -toda ela- do processo político nas próximas décadas.

Não creio que a demonização de Palocci, que não traz nenhum fato novo e nenhuma prova contra Lula (“qualifica” fatos já relatados para negociar sua saída do cárcere) traga alguma coisa de boa para o PT, para o país e para esquerda em geral. Palocci é um homem debilitado, refém desesperado da exceção, que num contexto politicamente amoral,  tenta a sua saída individual, para a qual ele careceu de orientação partidária durante todo este tempo. Comparemos o caso de Palocci com o julgamento interno de Sendic, que lhe estimulou para a renúncia à Vice-Presidência, tendo por escopo prestigiar a Frente Ampla perante a sociedade.

Bukharin – nos Processos de Moscou – cita as palavras de Engels sobre o dilema ideológico de Goethe, aproveitando-as para si mesmo: “ter de existir num contexto que não podia deixar de desprezar, e estar acorrentado a este contexto, uma vez que era o único em que podia atuar.”  Ao assinar a “transigência”, em 1930, Bukharin buscou um “meio termo” entre a resistência aberta e a “glorificação” da linha stalinista. Palocci – e agora quem sabe Guido – estão tratando das suas próprias vidas, perante os processos de “exceção” da pós-modernidade democrática em crise terminal. Trair a confiança de Lula, como amigo, é uma questão de fidelidade entre indivíduos. Defender-se da “exceção” sem nobreza é a verdadeira tragédia política, que percorre a democracia em todo o mundo como decadência. Mas não é em um contexto heróico que se decidem os destinos do Estado e da Revolução. No momento atual, é humano exigir mais de Palocci, acorrentado a um contexto em que é o único “em que (ele) pode atuar”?  Pode-se exigir, é lógico, mas deve-se apontar claramente em nome de quê.

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